
Egípcios Brancos ou Negros?
Pan-africanismo, afrocentrismo, identidades e kemetismo (Parte 3)

Dica: leia o texto anterior (Parte 2)
Autodeterminação e nacionalismo faraônico
Segundo o Prof. Moustafa Gadalla, um critério sem fundamento, freqüentemente difundido por egiptólogos ocidentais, é que Kemet tenha, durante milênios, incorporado costumes de outras culturas. “Todos os historiadores gregos e romanos antigos confirmaram que os egípcios preservavam sua cultura. Por exemplo, Heródoto (V aec) afirmou o seguinte em Histórias - Livro 2, Seção 79: "os egípcios mantêm seus costumes nativos e nunca adotam os costumes estrangeiros". No Livro 2, Seção 91, Heródoto declara: "os egípcios não estão dispostos a adotar os costumes gregos ou de qualquer outro país".
>>> É claro que dentro de um contexto antropológico, não existe cultura pura, nem seria possível, mas no entanto, aqui não se trata de purismo étnico, mas de perceber uma relação muito vinculada com a tradição e o cuidado permanente pela não hibridização cultural forçada, o que é bem diferente de purismo.

Esse fenômeno do faraonismo é emblemático se formos pensar em tudo o que foi dito sobre o povo egípcio até agora, sobre sua nítida diferenciação cultural, tanto em relação ao Ocidente quanto em relação aos árabes em geral. No início do século XX, esse movimento ganhou tanta força no Egito que se desenvolvia já de forma isolado de todo o mundo árabe. Esse fermento do faraonismo, enquanto ideologia política e cultural, reivindicou para si um Egito que foi se forjando, ao longo da sua história pré-islâmica, em um relativo isolamento do Vale do Nilo. A sua ancestralidade étnica, não homogênea, dos nativos do nordeste e leste africano era sua principal característica.
Isso, segundo seus intelectuais, aconteceu independentemente da identidade religiosa que se sobrepunha. Um dos mais notáveis defensores do faraonismo foi Taha Hussein, que afirmava que esse movimento,
“está profundamente enraizado nos espíritos dos egípcios. Ele permanecerá assim e deve continuar e se tornar mais forte. O egípcio é faraônico antes de ser árabe".
>>> Taha Hussein (1889-1973) foi um dos mais influentes escritores e intelectuais egípcios do século XX e uma figura de proa do faraonismo nacionalista egípcio. Seu apelido era "O Decano da Literatura Árabe", pois foi nomeado para prêmio Nobel de Literatura 14 vezes. Em 1950, foi ministro do Conhecimento (Ministério da Educação nos dias de hoje), onde liderou um movimento para a educação gratuita, sendo contra a alfabetização apenas para os ricos. Em suas mãos, os egípcios começaram a receber educação gratuita. Autor de uma obra de mais de 60 livros e 1.300 artigos, seus principais trabalhos incluem:
A Filosofia De Ibn Khaldun 1925; Poesia Pré-Islâmica 1926; O futuro da cultura no Egito 1938
Tal força esse movimento tomou corpo que o sírio nacionalista Sati Al-Husri observou que "os egípcios não possuíam um sentimento nacionalista árabe; não aceitavam que o Egito fizesse parte das terras árabes e não reconheceram que o povo egípcio faça parte da nação árabe". (Jankowski, "Egito e Nacionalismo Árabe Antigo", p. 246)
No estabelecimento da Liga dos Estados Árabes, em 1945, sediada no Cairo, o historiador H. S. Deighton, da Universidade de Oxford, escrevia:
“Os egípcios não são árabes. Eles e os árabes estão cientes desse fato. Eles falam árabe e são predominantemente muçulmanos. Mas o egípcio, durante os primeiros trinta anos do século XX, não tinha conhecimento de qualquer vínculo particular com o Oriente árabe.” (Deighton, HS "O Oriente Médio Árabe e o Mundo Moderno", International Affairs, vol. xxii, n. 4, outubro de 1946, p. 519)
O movimento faraonista acabou enfraquecendo-se quando no final dos anos 1930, o nacionalismo pan-arabista se somou aos ativismos de intelectuais sírios, palestinos e libaneses. A política de Nasser foi feita na ideia de que todos os estados árabes deveriam lutar contra o imperialismo francês e britânico e a solidariedade entre eles deveria ser imperativa para a sua emancipação. Embora esse arabismo imposto e importado no país por Nasser não estivesse profundamente enraizado na sociedade egípcia, os governantes passaram a se considerar como líderes dessa “entidade cultural maior”: a Pátria Árabe.


A condenação muçulmana, judaica e cristã do faraonismo
Mas voltemos atrás… uma identidade egípcia havia se formado, desde o período da Idade do Ferro, faraônico, e que foi evoluindo por longos processos. No século IV ec, a maioria dos egípcios foi forçada a se converter ao cristianismo, e no ano de 535 ec, o imperador romano Justiniano ordenou o fechamento definitivo do Templo de Aset/Isis em Philae, marcando o início do “fim” formal da cultura faraônica. Mas, como vimos, não obtiveram êxito em exterminá-la por completo, porque a cultura sempre acaba pertencendo à subjetividade popular. Durante a Idade Média, os monumentos faraônicos foram destruídos como remanescentes de um tempo de jahiliyyah muçulmana (ou "a ignorância bárbara").
Entre os mais notáveis atos de barbarismo, foi a destruição de uma estátua de Aset em 1311 e a destruição de um templo em Memphis em 1350, dando “alívio” ao "mau olhado" (o Olho de Hórus) gravado nas paredes do templo. No próprio Alcorão, o profeta destaca que o faraó relacionado no livro do Êxodo judaico, é um tirano cruel contra o poder de Allah. Vários líderes muçulmanos, como o califa Yazid III, ordenaram a destruição de todos os monumentos faraônicos.

No entanto, apesar do ataque islâmico, a população nativa egípcia permanecia fiel às suas crenças e culturas. Os monumentos ainda eram vistos como possuidores de poderes mágicos, vistos como objetos de respeito pelo povo, mesmo que no Alcorão se execrara a tradição egípcia, especialmente repreensível de jahiliyyah.
Um fato verídico é que em 1378, relatado por camponeses, aparentemente “muçulmanos”, queimava-se incenso à noite em frente à Esfinge enquanto islâmicos proferiam orações para ela. A fim de evitar a destruição das ruínas, os árabes geralmente "islamizavam" essas ruínas inventando histórias que as associavam aos companheiros do profeta ou aos santos sufis locais, transformando-as em locais quase islâmicos, proibindo assim, a sua destruição.
O faraonismo foi condenado por Hassan al-Banna, o fundador da Irmandade Muçulmana, que em 2012, patrocinou o partido político eleito no Egito após a Primavera Árabe. Banna atacou o faraonismo por este glorificar os "faraós pagãos" como Ramsés, Seti e Tutmosis, ao invés de o fazer com o profeta Mohammad e seus companheiros.
Dentro do processo eurocêntrico e colonizador, além da islamização da cultura original, outro problema que houve na história egípcia, é que todo o trabalho arqueológico do século XIX e na primeira metade do século XX, foi feito apenas por arqueólogos estrangeiros. Estes, desencorajaram os egípcios nativos de estudar o seu próprio período histórico. Os arqueólogos ocidentais tendiam a ver o estudo do “antigo Egito” como não tendo nada a ver com o Egito moderno.
Foi nesse período, na Europa, que várias teorias raciais foram criadas para afirmar que os “egípcios modernos” não eram descendentes dos “antigos egípcios”. Tal “declínio” teria sido causado pela miscigenação com a população nativa “racialmente inferior”, negróide, etc. A ideia de tais teorias era afirmar que o Ocidente seria o "verdadeiro herdeiro” do “antigo Egito”, cuja cultura era vista sem conexão com os “egípcios modernos”.
[... continua]
Por Pablo Al Masrii
