
AKHU: Culto dos Antepassados

Como sabemos, no kemetismo e na antiga cosmovisão egípcia, a forma de compreender o seu mecanismo de apreensão da realidade era feita de diversas formas, que praticamente constituem as suas bases e princípios do próprio kemetismo. Entre elas, podemos encontrar o Holismo, o conceito de Maat e Neteru, a organização do Clã ou Comunidade, e por último, e não menos importante... Akhu.
Esta palavra que no seu sentido original significa "ancestral", também pode nos indicar outras observações interessantes:
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Bakhu = Região Ocidental de Kemet, referindo-se ao lugar dos mortos e dos antepassados, o Oeste de Amenti, onde se põe a Luz de Ra;
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Akhu = "Ancestral", mas também: "brilho", "poder sagrado" (já que Akh é um dos 10 corpos que faz parte da "centelha divina";
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Imakhu = nome de cargo sacerdotal, conhecido como "Reverenciado" dentro do culto de Anpu (Anúbis);
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Iakhu = "esplendor";
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Sakhu = "recitações rituais".
Para tentar trazer esse significado para nosso contexto cultural e cognitivo linguístico, sem perder sua essência, Akhu tem a ver com a forma em que as principais nações que praticavam o animismo e totemismo africanos (incluindo Kemet), possuindo elos em comum, tinham na tradição a base para o seu culto aos ancestrais (Akhu).
Neste sentido, tal como tep awy, ou seja, a grande comunidade de predecessores ancestrais (algo como a grande família), os seus membros se agrupavam em clãs que, por sua vez, cultuavam (e continuam cultuando) um espírito ancestral principal, que tanto pode ser uma força da natureza, quanto cultural (egrégora).
Frazer escreve...

Tanto o culto dos antepassados quanto o culto de árvores sagradas (imá neter) se misturam e se perdem nas brumas do tempo. Por exemplo, em Kemet, temos a maravilhosa figura e emblema do sicômoro (nehet), chamada de a Árvore da Vida. Nessa árvore, segundo os textos sagrados, está encarnada na terra o espírito de Het-Heru (Hathor) e suas servas, onde que os espíritos dos mortos, na sua forma de Ka, vem beber e se alimentar após a sua partida terrena.
É fácil encontrar alusões mais próximas ao sicômoro, pois segundo Plutarco, ele mesmo (a árvore) teria crescido abundantemente em torno do falecido corpo de User (Osíris) quando foi achado na terra fenícia de Biblos. De acordo com Donald Mackenzie, Tahuti (Thoth) teria entalhado diversos nomes de faraós em um sicômoro específico. Esses mitos sobressaíram-se durante o passar de séculos, e por esta razão, atestar a sua longínqua existência, no seio da história humana, seja no continente africano, asiático e europeu, e até ameríndio, confere certa veracidade a qual veremos a seguir.
O espírito (Ka) de uma árvore, era/é (continua sendo para muitos povos), ao mesmo tempo, um espírito elemental de uma árvore, como User, como manifestação da energia lunar, mas também de seus antepassados.
O culto de ancestrais em Kemet era concebido pela graça (Dua) de um espírito elemental de uma árvore sagrada que proporcionava inúmeros favores. Ao mesmo tempo, como troca, bolos e pães eram depositados em seus pés, e bebidas eram derramadas. A influência desse antigo culto, o Akhu, pode ser traçada desde os tempos pré-dinásticos, anteriores à popularização de User, mas no culto a Seqer e Bata, por exemplo. Assim, no período dinástico mais tardio, o culto dos antepassados e das árvores foi revivido quando esse costume passou a ser perdido pelas pessoas que vinham de fora, ganhando assim, uma nova ascensão. Podemos ver que este culto ainda não desapareceu por completo em todo o Alto Egito, nos países vizinhos e até na região do Delta. Há árvores sagradas, bem como poços sagrados que ainda são considerados divinos e todos os anos, milhares de pessoas fazem suas peregrinações afim de buscarem bençãos.

A ideia de um grande sicômoro que possui enormes cachos de frutas em meio à sua belíssima folhagem remete à natureza que se aproxima de Het-Heru em sua forma manifestada, que segura em suas mãos, em forma de concha, manjares e água doce e limpa. Quem bebe? Os vivos e os mortos. O espírito ao se alimentar dessas oferendas e sacrifícios divinos, também bebe da água que provém da Grande Mãe que Tudo Dá. Para se tornar Uno com os neteru, o espírito do falecido, seu Ka, deve assim proceder, tornar-se um servo deles, retomando sua natureza viva, sem os seus corpos materiais, mais próximo de sua luminosidade, justificada perante Maat e encorajada a seguir os caminhos divinos de sua ancestralidade, se for sua decisão e livre-arbítrio para avançar mais no processo de purificação. Se o espírito rejeitar a hospitalidade da divindade da árvore, ele terá que retornar novamente aos processos "umbrais" do Duat, de onde sai à luz após a Primeira Morte.
Vamos lembrar que Het-Heru é a divindade (neteret) do sicômoro, Ela é a "Casa de Heru" (Hórus), e como tal, leva o Sol e os chifres em sua cabeça. O topo da árvore é conhecido como o lugar de repouso do falcão e do nascimento do sol, ou mesmo o ninho da qual surge Bennu, o íbis-fênix. O sicômoro se estabelece em Bakhu, como vimos antes, no lado ocidental do céu e da terra. No Livro dos Mortos existem dois sicômoros que estão nos portões dos céus, nos planos sutis, que liga o sicômoro com o nascimento de Ra e com User, o neter contido dentro da árvore. Assim, Ra aparece todas as manhãs entre os dois sicômoros. Os espíritos que podem ver isso serão sempre destinados à eterna felicidade.

É fato que o mito reflete a consciência humana em um determinado aspecto gnosiológico e cognitivo. A ciência começou através do longo processo de observação dos fenômenos naturais, incluindo os visíveis e "invisíveis" por nossos primeiros antepassados humanos. Ou a arte de metalurgia, da antiga medicina e da construção não são consideradas como obras da ciência?
Adentrar nos mistérios da natureza, do universo e do ser humano, nossos antepassados tiveram de desenvolver seus instintos para uma consciência muito mais abstrata do que teríamos hoje em dia. As manifestações dessa natureza fizeram com que o ser humano passasse por verdadeiros estágios de provas e estudos experimentais.
Em Kemet, quando esta cultura, a partir das suas predecessoras, Naqada, Merinde, Fayum e Badari, soube resgatar e registrar em forma de papiros esses costumes milenares de culto aos mortos, o mundo da época nunca mais foi mais o mesmo. Os egípcios praticamente promoveram uma forma muito específica de tradição ligada ao culto aos antepassados, porque haviam formulado a estrutura dos corpos, sutis e densos. Para manter a chama viva (Ankh) de seus corpos ainda retidos de energia e para poderem se manifestar, espírito e consciência deveriam ser cultuados pelos sacerdotes, os hem-ka/hemet-ka, ou Sacerdote do Ka/Sacerdotisa do Ka, erguendo pequenos santuários (o chamado Per-Ka, "Casa do Ka").
Nessas casas ou templos mortuários, se realizavam os dua (práticas de rezas, bençãos, pedidos e chamados cerimoniais) que visavam, através de representações dos falecidos como estelas, gravuras ou estatuetas, com altares de oferendas em dias indicados pelos sacerdotes. Nesses dias, as imagens eram ricamente decoradas e durante semanas os sacerdotes purificavam ritualisticamente os espaços sagrados.
Hoje, no Egito moderno, os chamados mouleds são essas reuniões familiares que sobreviveram aos milhares de anos e que as culturas posteriores não conseguiram apagar. Nos mouleds tradicionais egípcios, a família cultua o ka dos antepassados, chamados de walis, com presentes e oferendas, tornando os encontros em casas de alegria. Não precisamos ir tão longe, mesmo os historiadores romanos e gregos, como Estrabão e Heródoto, em suas passagens pelo Nilo, escreveram que pessoas de todas as idades participavam dos rituais de culto aos antepassados, onde até 700 mil pessoas em um dia podiam participar em Zagazig, Delta do Nilo.

Hoje, o mesmo tipo de culto ainda pode ser visto em diversos povos africanos. Nas comunidades tradicionais africanas geralmente assumem formas parecidas e idênticas. Às vezes, diferem de um lugar para outro, mas certos padrões e elementos podem ser gerais na maioria dos casos. Os cultos aos ancestrais nas comunidades nilóticas, próximas ao Egito, incluem rezas, espaços sagrados separados dos lares, um dia de festa anual, oferendas, entre outras coisas. Nestes espaços, tal como no culto das árvores e na figura de Het-Heru (Hathor), são solicitadas coisas como: boa saúde, cura, proteção contra perigos, segurança em viagens, prosperidade, preservação da vida e paz para a comunidade. Em comunidades do Alto Egito, o termo Ka e Kau são praticamente os mesmos até hoje!
E se formos mais para perto, o culto aos ancestrais no Brasil que vieram de África, como o culto de Egungun, mostra o quanto os costumes de continuar respeitando a ancestralidade são vivos. Alguns eguns são cultuados de forma específica por determinadas "nações" de candomblé, tal como na Umbanda, em suas diversas vertentes, em espaços sagrados e templos com seus sacerdotes especiais do culto. O mesmo encontramos em tradições indígenas, japonesas, indianas, etc. Em Roma antiga, o banquete dado aos parentes falecidos, era chamado de Parentalia, celebrado em casinhas ou criptas que eram visitadas todos os anos pelos seus familiares, com rezas, cânticos e bebidas. A "Caristia" ou a "festa da reconciliação", vem dos cultos antigos romanos que ajudavam a fortalecer essa memória da ancestralidade, tão efêmera nos dias de hoje.
Por Pablo Al Masrii
